Conversando com um primo bacharel em direito e licenciado em história, na época das eleições presidenciais de 2018, me assustei ao ouvir: “É impossível termos ditadura no Brasil de novo.”
Como não é possível? A democracia brasileira é jovem. E a população, em geral, não entende a força e consequências (a médio e longo prazo) do voto. Essa constatação é feita facilmente ao analisarmos a postura de familiares à época de eleições e após o pleito.
Não é segredo que a “imprensa foi alvo da censura durante a ditadura instaurada pelo golpe civil-militar de 1964, que assumiu múltiplas formas: a lei da imprensa de 1967, a censura prévia, em 1970, a autocensura.”, de acordo com Daniel Reis e Denise Rollemberg, professores de História da UFF.
Contudo, as características da censura contra os meios de comunicação, conhecidas de todos que estudamos com algum cuidado a história desse país, não se aplicam hodiernamente. A censura tem ganhado novas nuances, novas roupagens.
“O sistema de informação continua maculado, cheio de nódoas. Não há mais censura prévia, como havia na ditadura, mas hoje há um controle do poder de distribuição da informação, que cerceia o fluxo normal das notícias. A censura vai se sofisticando, pois o sistema vai se aprimorando”, alertou o jornalista Alberto Dines, em debate organizado pelo departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), cujo tema foi “Censura e crime político no regime militar” em novembro de 2001.
Se “a censura serviu para cercear periódicos de grande circulação como Última Hora e Correio da Manhã e os da imprensa alternativa ou nanica, como Opinião, Movimento, Em Tempo, Pasquim, igualmente foi útil a muitos outros para calar aqueles que veiculavam posições contrárias ao regime e/ou à ordem capitalista. A censura, assim, desempenhou papel fundamental na implantação e na consolidação da ditadura, silenciando uns e servindo a outros. Houve abençoados pela censura que construíram impérios de comunicações. Lembrar os jornalistas que resistiram ao arbítrio não pode implicar no esquecimento daqueles – jornalistas e jornais – que estiveram a favor do arbítrio, louvando em suas páginas os grandes feitos dos militares, suas conquistas econômicas e a pacificação do país, celebrando a eliminação dos terroristas e dos maus brasileiros que ameaçavam a ordem e o progresso.”, ponderam Reis e Rollemberg.
Trazendo para os tempos atuais, ao se comparar dois grandes grupos, líderes brasileiros em teledifusão, Rede Globo e Record, vemos uma tentativa de desmonte da primeira e uma alavancada da segunda. Isto porque, Globo tem se posicionado contrária ao governo Bolsonaro, enquanto a Record, manifestamente é aliada do governante, que se traveste de cristão para manter apoio das bancadas da bala, boi e bíblia.
Importante lembrar que a emissora vista, erroneamente, como esquerdista (não esqueçamos do papel fundamental da mesma no impedimento da presidenta Dilma) só assumiu liderança na área da comunicação no Brasil a partir do apoio dado ao governo militar. Veja aqui.
Inclusive, o programa Roda Viva teve como entrevistado o diretor da emissora, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, conhecido como Boni, que foi questionado a respeito dos ataques sofridos pelo governo Bolsonaro.
Veja a seguir:
#ParaTodosVerem – a capa do vídeo com a marca “Roda Viva” à esquerda e da TV Cultura à direita, exibe Boni, 85 anos de idade, sentado com as mãos cruzadas, cabelos brancos, camisa polo preta e fones de ouvido. Ao fundo, uma estante repeleta de livros e uma claquete, usada na identificação de cenas na TV e cinema.
A conquista da queda de Rousseff parece não ter sido um bom negócio para a Globo. A queda da audiência, primeiro, pelas novas gerações que nem cogitam trocar a internet pela televisão, depois pelos “cidadãos de bem” que boicotam a emissora e pela pressão governamental que dificulta sua sobrevida. Todo o contexto que tem se formado, parece revelar a agonia da emissora para respirar.
Na outra ponta, temos a Record, que tem visto seu faturamento avançar, após 4 anos amargando decréscimo. Além dos acordos com o governo que, descaradamente, beneficia a emissora que o apoia, o “Relatório do TCU (Tribunal de Contas da União), publicado pela Folha de S.Paulo em novembro, mostrou que a rede de Edir Macedo ficou com 42% dos investimentos do presidente em publicidade na TV aberta no primeiro semestre (2019), enquanto a Globo, líder de audiência, abocanhou só 16%”, de acordo com o Notícias da TV.
Fabio Py, doutor em teologia, lembra “Um detalhe que não pode ser desprezado no respaldo de Macedo à gestão Bolsonaro. Esse apoio irrestrito rende milhões, principalmente, em verbas, à TV Record. Segundo a Agência Pública, a emissora recebeu recentemente a injeção de 25 milhões em dinheiro vindo direto do Secom (Secretaria da Comunicação da Presidência).”
Alerta: não assista o vídeo a seguir se estiver comendo. Risco de indigestão.
#ParaTodosVerem – A capa do vídeo com a marca do “Planalto”, exibe, em primeiro plano, sentados no mesmo sofá, Edir Macedo à esquerda, Jair Bolsonaro ao centro e Silvio Santos à direita. Atrás de cada um deles, as respectivas esposas com uma das mãos sobre o ombro do marido. Todos sorriem. Ao fundo estante com livros e quadros.
De um lado, uma emissora descreditada pelos “cidadãos de bem“, mas também pelos subcidadãos; de outro lado uma emissora que fez alarde com uma “super-grávida“, usando a imagem da pessoa para se promover durante a falsa gravidez e após a revelação da farsa, propriedade de Edir Macedo respaldando “abertamente a presidência com um leque de abordagens cristãs de desprezo à ciência e de apoio a políticas eugenistas, entrega milhões de brasileiros à morte.” (Fabio Py).
Tanto num caso, quanto no outro, o jornalismo se enfraquece e mais descreditado fica. Porque ambos os conglomerados sempre estiveram pelos seus interesses próprios, usando acordos políticos para tal, e não pela comunicação. Obviamente só “pela comunicação” seria muita ingenuidade. Mas, em alguma medida, se fazia necessário demonstrar alguma seriedade com a área, com a comunidade. Principalmente no que tange defender a liberdade de imprensa e se contrapor à censura. Globo, no passado fez alianças com a censura e, agora, a Record assume esse papel. Ainda que essas alianças sejam travestidas de bom jornalismo para cidadãos de bem.
Os ataques à imprensa são monitorados pela Repórteres sem Fronteiras (RSF), organização não-governamental independente com status consultivo na Organização das Nações Unidas (ONU), na Unesco, no Conselho da Europa e na Organização Internacional da Francofonia (OIF). A RSF representa uma rede que mobiliza 130 países, com escritórios em dez cidades – entre as quais Bruxelas, Washington, Berlim, Túnis, Rio de Janeiro e Estocolmo. Tem demonstrado capacidade de mobilizar apoio, desafiar governos e exercer influência tanto nos locais de onde se reporta, quanto nos circuitos e ministérios onde são elaboradas leis e normas para a imprensa e para a internet.
Sobre o Brasil, a RSF alerta que o país ocupa a posição 111º no ranking de Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa 2021 (Argentina, 69º e Chile, 54º). Posição baixíssima, que deixa o país sinalizado com bandeira vermelha. Isto é decorrente, em parte, porque o “trabalho da imprensa brasileira tornou-se especialmente complexo desde que Jair Bolsonaro foi eleito presidente, em 2018. Insultos, difamação, estigmatização e humilhação de jornalistas passaram a ser a marca registrada do presidente brasileiro.” Para ler na íntegra, acesse aqui.
Precisamos de jornalismo comprometido com a comunidade e a democracia. “Homenagear a resistência de jornais e jornalistas é antes de tudo compreender a complexidade e as evoluções da época, nas quais a imprensa teve lugar relevante, intermediando as relações entre opinião e regime. Homenageá-los não é ver os censores-imbecis enganados por jornalistas-inteligentes, encontrando aí mais uma dualidade simplificadora que contorna o esforço de compreensão, levando a lugar nenhum. Homenagear os jornalistas resistentes é enxergar o universo no qual atuaram, é resistir a uma certa memória que silencia a história.” Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg.
A comunicação tem papel fundamental na democracia. Por isso, a censura é uma arma tão apreciada pelos governos autoritários. Contudo, é fundamental resgatar a credibilidade que determinados veículos de comunicação brasileiros colaboraram para que se perdesse. O juramento que todos os comunicólogos fazemos é: “Como Bacharel em Comunicação Social, prometo buscar meus ideais, seguindo a meta de trabalho que livremente escolhi. Comunicando com ética, honestidade e responsabilidade, aquilo que aprendi. Prometo promover a aproximação entre as pessoas, para que possam compreender o sentido da comunicação na sociedade e na humanidade.”
Comunicólogos brasileiros: ou nos comprometemos com a carreira e a comunidade, ou jogamos a última pá de terra sobre a democracia.
O Comunica já trouxe a pauta da censura com diferentes abordagens. Se quiser relembrar alguns desses posts, acesse:
Henfil: Os traços de uma ditadura
Ainda sobre o tema, temos algumas sugestões de leitura:
El País: Casos de censura à imprensa no Brasil expõem clima de “degradação da liberdade”
El País: Bolsonaro e a receita húngara para acabar com a imprensa crítica
Isto É: Imprensa sob ataque
Portal dos Jornalistas: Abraji diz que cerca de 70% dos ataques à imprensa em 2020 vieram de agentes públicos
#ParaTodosVerem – a imagem da capa apresenta uma arte de Cris Vector com três personagens sobre um fundo amarelo. A personagem em primeiro plano é um homem, trajando camisa clara e calça escura. Ele carrega uma câmera e um crachá sobre o peito e parece estar caindo ao correr. Da sua boca saem as frases: “M… Mas e… o… PT? E… o… Lula?”. Em segundo plano, à direita, um homem com a camisa da seleção brasileira de futebol portando um celular ao que indica está filmando a cena, enquanto dá risada. À esquerda, o que parece ser o palhaço Bozo vestindo uma farda, com a camiseta da seleção brasileira por baixo e com um cassetete na mão numa postura de ataque ao homem que cai.
Referências: