“(…) A raça tem sido um critério adscritivo conscientemente mantido pelos brancos simplesmente porque os mesmos mantêm vantagens materiais e simbólicas. Do ponto de vista cultural ou simbólico, um aspecto fundamental de nossa sociedade tem sido o racismo que, como tudo indica, origina-se do eurocentrismo. Este consiste na “construção autoritativa de normas que privilegiam traços associados com o fato de ser branco”. Fato esse que “vive de braços dados” com o racismo cultural que opera a constante desvalorização e depreciação de coisas tidas como “negras”, “marrons” e “indígenas” (…)”

É a partir dessa citação do livro de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e outros organizadores que começamos nossa discussão. Eu lhe pergunto:

Você sabe o que é privilégio?

Privilégio é aquilo herdado por nós e que é reconhecido socialmente como um bem, a pele branca, por exemplo, é um privilégio numa sociedade racista, pois a cor da pele pode abrir portas para você, assim como também pode fechar. Desde a nossa infância temos uma educação deficitária, aprendemos na escola as histórias a partir do ponto de vista europeu colonizador. Muitas vezes, o único aspecto sobre a população negra que nos é ensinado é que ela foi escravizada por mais de 300 anos e que depois a escravidão foi abolida.  

Negros e pardos representam 53,6% de toda a população brasileira, mas apenas 12% da população negra tem ensino superior e 13% da parda, segundo dados do IBGE. Os números mostram ainda, em relação à remuneração, que enquanto uma pessoa branca recebe quinhentos reais, uma pessoa negra recebe menos de trezentos e quando tratamos das mulheres negras esse quadro se agrava: o salário de uma mulher negra equivale a 35% de um homem branco. Isso reflete a diferença de oportunidades que existe em nossa sociedade, consequência histórica da escravidão.

Que tal recapitular um pouquinho?

Tivemos pessoas negras escravizadas no Brasil por 354 anos, faz somente 128 anos que a escravidão foi proibida pela assinatura da Lei Áurea, mas ainda hoje existem casos de trabalhos análogos à escravidão.

Com a “abolição”, a população negra foi expulsa das fazendas em que trabalhavam e tiveram que buscar moradia e trabalho numa sociedade racista que não estava interessada,  nem disposta na criação de mecanismos de inclusão. Foi obrigada a migrar das senzalas para as favelas, diferente do que aconteceu com muitos imigrantes europeus, que foram incentivados a vir para o Brasil. Além disso, esses imigrantes receberam terras do Estado e tiveram um trabalho remunerado. Ampliou-se, então, o abismo social entre negros e brancos, com oportunidades discrepantes: para uns (brancos) elas existiam, para outros (negros) elas não passavam de um mito.

Ações afirmativas, como essas que os imigrantes europeus receberam, são uma maneira de colocar as pessoas no mesmo patamar. A implementação das cotas raciais nas Universidades tem esse sentido, são tidas como ações contra a desigualdade num sistema que privilegia um grupo em detrimento de outros. Elas não se aplicam somente a negros/as, mas também a pessoas indígenas e pardas.

Segundo o site Politize, de acordo com um Censo de 1997 somente 1,8% dos/as jovens negros/as entre 18 e 24 anos havia frequentado a Universidade. Diante desse dado, surgiram reivindicações de cotas raciais pelo movimento negro. Quatorze anos depois, a lei nº 12.711/2012 (Lei das Cotas) foi implementada e estabeleceu que até agosto de 2016 todas as Instituições Federais de Ensino Superior teriam que destinar metade de suas vagas para estudantes de escolas públicas e a distribuição das vagas precisaria também levar em conta critérios raciais e sociais. Devemos considerar que temos a maioria da população negra pobre por conta da herança escravocrata, como apresenta Djamila Ribeiro, pesquisadora na área de Filosofia Política e feminista.

Além das cotas raciais, o movimento negro também reivindica a melhoria do ensino de base, mas dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que demoraria 50 anos para isso acontecer. As cotas vêm, então, como uma medida emergencial de inclusão.

As Universidades Estaduais não estão inseridas nessa Lei das Cotas, mas incorporam através de regulamento interno ou por leis promulgadas pelo estado. Eloá Lamin da Gama, graduanda em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB) e também do coletivo Yalodê-Badá, falou brevemente sobre a questão no evento “Por que a UEM não tem cotas raciais?” promovido pelo coletivo nos dia 06 e 07 de novembro de 2017. Confira o áudio:

Eloá e Natália Foto: Phill Natal

Eloá e Natália
Foto: Phill Natal

Por que a UEM não tem cotas raciais? Foto: Phill Natal

Por que a UEM não tem cotas raciais?
Foto: Phill Natal

A UEM é uma das únicas Universidades Públicas do Paraná que ainda não implementou as cotas raciais. O professor doutor Delton Felipe que também compôs a mesa no evento falou sobre o tema com o Comunica:

Prof Dr. Delton Felipe Foto: Phill Natal

Prof. Dr. Delton Felipe
Foto: Phill Natal

Além disso, o professor declarou no evento que a discussão sobre cotas não se trata do indivíduo e sim da estrutura. Em nosso país houve uma fragmentação do negro, reforçada pela institucionalidade do Censo do IBGE, por exemplo, em três categorias: negro, quando a pessoa reconhece sua ancestralidade, preto e pardo, ligados mais ao tom da pele. A partir dessa fragmentação surge a falsa ideia de que não dá para saber quem realmente é negro, porém os vários tons de pele dos brancos nunca foram questionados. Assim como as ações afirmativas aplicadas para as pessoas brancas.

Outra participante do evento foi Natália Cordeiro Lisboa, graduanda em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) que expôs um pouco de sua experiência como mulher negra e cotista na Universidade, fazendo um percurso histórico das cotas e de como a implementação se deu na UEL. Ouça:

Natália Cordeiro Lisboa Foto: Phill Natal

Natália Cordeiro Lisboa
Foto: Phill Natal

A mesa foi questionada sobre qual seria a maior dificuldade da implementação das cotas na UEM. Delton acredita que a maior dificuldade é a falta de representatividade da população negra nas instâncias de decisão. Eloá disse que a maior dificuldade é o racismo, já Natália discorreu sobre o medo.

Diante desses quadros, o Coletivo Yalodê-Badá tem lutado pela implementação das cotas raciais na UEM. Eloá falou em entrevista para o ComunicaUEM um pouco sobre essa luta.

Eloá Lamin da Gama Foto: Phill Natal

Eloá Lamin da Gama
Foto: Phill Natal

Comunica: Quando e porque surgiu o Coletivo Yalodê-Badá?
Eloá: Foi fundado em 2015 por conta de alguns estudantes negros da UEM, porque surgiu a demanda de falar da questão racial e também ia acontecer o Encontro Estadual de Estudantes Negros em Curitiba, ocorreu em todos os estados do país. Através dessa organização surgiu o coletivo porque quando retornaram a Maringá se viram ainda com as questões que discutiram no encontro. O coletivo não é institucionalizado pela UEM, então não tem o mesmo vínculo que o NEIAB tem, somos auto organizados e independentes, sem fins lucrativos. Nossa organização é horizontal, onde todos têm voz e vez em nossas reuniões e em nossas demandas. Já tivemos a participação de estudantes adolescentes da rede básica e sempre tentamos dialogar com o ensino (médio) público, com as pessoas que visam entrar na Universidade, para mostrar que isso é possível. Também pessoas que não tem nenhum vínculo com a UEM, que não terminaram os estudos e de Universidades privadas. Nossas ações acabam se concentrando mais dentro da UEM por conta de entendermos que é um espaço público e de direito de todos, além de não vermos jovens negros aqui. E as cotas raciais são umas das nossas principais demandas. Sempre tivemos os picos baixos e altos, às vezes é bem difícil continuar com a militância e as demandas, porque algumas vezes nossas demandas são muito grandes e não temos tantas pessoas para atender tudo, parece que fica meio restrito a nós, e sabemos que não deveria ser assim. Essas discussões ficam exclusivas a órgãos como o NEIAB e o coletivo.

Comunica: Quais as principais bandeiras do coletivo?
Eloá: É levar e pautar as questões étnico-raciais, óbvio que a gente não pode massificar o movimento negro como um todo, cristalizar a identidade negra. Somos seres pensantes, então vai haver divergências regionais, de classe, gênero, sexualidade, não é só a questão racial. Mas por conta de entendermos a raça como um dos fatores que nos oprimem na sociedade, tentamos pautar essas relações. Temos estudantes da Psicologia, da História, da Ciências Sociais, da Publicidade e Propaganda, da Educação Física, graduandos, mestrandos, várias áreas. Nós falamos bastante de ações afirmativas como as cotas, as pessoas da psicologia têm um viés voltado para a saúde mental da população negra, outras pessoas focam mais na arte e no corpo, por exemplo. Pautamos as questões raciais, mas dentro dessas questões temos um âmbito gigantesco de outras questões, cada um tem sua afinidade, sua pesquisa e sua vontade de estudar sobre o tema, vamos pesquisando e sempre tentando estudar juntos, porque isso é muito importante. Além disso, construímos um espaço para ficarmos juntos, além da militância, um espaço de convivência negra dentro da Universidade, para conversarmos, trocar vivências, conversas e também de amizade.

Comunica: Qual a importância das cotas raciais?
Eloá: A criação das cotas raciais é uma das modalidades de ações afirmativas, geralmente essas ações são de políticas públicas, mas muitas empresas e Universidades privadas vêm abrindo as portas para ações afirmativas porque dentro da própria dinâmica do capitalismo eles entendem que a população negra é consumidora, é produtora de conhecimento e de saber e tem que estar nesses espaços. A importância das cotas raciais é uma reparação da população negra e também indígena, pelo histórico de opressão, pelos quase 400 anos de escravidão, pela falsa abolição e pelo apartheid de benefícios sociais. As cotas raciais visam acabar com as desigualdades provocadas pelo fator da raça. Mas além de incluir a população negra na Universidade, entendemos as cotas como uma política pública que viabiliza a construção de outros saberes. Sempre que falamos de autores clássicos são os homens europeus e brancos, precisamos mudar o que temos como conhecimento e incluir os outros saberes, visões e vivências de mundo, essa é uma das principais características das cotas raciais. O debate “eu sou contra ou a favor” já está ultrapassado, falar sobre cotas é ciência, deve ser levado com seriedade, é algo que tem constitucionalidade, é previsto por uma lei, é legítimo e as pessoas ainda estão nesse debate do contra ou a favor.

Comunica: Como tem sido a luta do coletivo pela implementação das cotas dentro da UEM?
Eloá: Na verdade, o Coletivo Yalodê-Badá não inaugurou nada, as cotas raciais vêm sendo discutidas há muito tempo, inclusive pelo NEIAB que tem quase 10 anos de existência. Em 2008, quando foram aprovadas as cotas sociais, eram as raciais que estavam sendo debatidas, devido a todo o conservadorismo da Universidade e dos órgãos competentes, como COU que é o Conselho Universitário, deram de consolo as cotas sociais. O movimento negro nunca excluiu as cotas sociais, quando falamos sobre as cotas raciais além da questão de classe, queremos pautar a questão da raça. Implementaram as sociais para ver se dava certo e depois discutiriam sobre as raciais, mas essa discussão nunca aconteceu. Parte de quem então? Dos pretos da Universidade, o que nos deixa cansados e desapontados, porque além de ser uma ação afirmativa, as cotas raciais deveriam ser uma política do movimento estudantil, assim como a permanência das pessoas aqui. A volta dessas discussões na UEM é importante para mostrar que não esquecemos, pensamos numa maneira de pressionar o poder para falar sobre cotas raciais, através da petição online, nosso objetivo é chegar a 5 mil assinaturas, não está sendo fácil, também estamos realizando uma campanha virtual com uma série de vídeos de pessoas apoiando as cotas, também com pessoas famosas. Queremos mostrar que não é um movimento isolado, é um movimento de força e queremos visibilidade. A última pesquisa oficial realizada pela Diretoria de Assuntos Acadêmicos (DAA) da UEM foi em 2011, na época tínhamos em torno de 14 mil estudantes e aproximadamente 1,8% correspondia a pessoas negras. A implementação das cotas raciais na UEM seria algo histórico e é um dos nossos principais objetivos. Queremos no mínimo um posicionamento da gestão e administração da Universidade. Não falar sobre isso é muito cruel e racista.

O ComunicaUEM entrou em contato com a administração da UEM buscando um posicionamento, porém, até o fechamento da matéria não houve disponibilidade dos gestores. A luta pelas cotas raciais continua, os espaços de debate sobre o assunto são essenciais para que a comunidade acadêmica entenda a necessidade dessa ação afirmativa e também para que aqueles que têm dúvidas, consigam saná-las.

Para contribuir com a luta, o coletivo Yalodê-Badá, junto ao NEIAB, criou uma petição para coletar assinaturas favoráveis às cotas raciais na UEM. O objetivo é coletar cinco mil assinaturas para mostrar que o movimento não é isolado, que é um movimento de força e visibilidade. Além disso, estão realizando uma campanha online com uma série de vídeos com pessoas apoiadoras das cotas. Conheça um pouco sobre a petição e assine: http://yalodebada.com.br.