A liberdade religiosa, direito prescrito na Constituição da República, se aplica – ou se aplicaria – a todas as religiões e [des]crenças do país. A lei não faz acepção, todas as crenças e religiões, sejam elas tradicionais e ocidentais ou não, têm os mesmos direitos no Brasil.

“Sem liberdade religiosa todas as outras liberdades são mitigadas e acabam por desaparecer. É o que uma ampla pesquisa histórica demonstra. Afinal, a liberdade religiosa é um desdobramento do direito de consciência – de pensar e agir conforme se deseja.”, afirma Lucas Guerreiro, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/SP.

A liberdade religiosa compreende a liberdade de crença; a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa. Aquela se refere à liberdade de escolher qualquer crença ou religião, ter o direito de mudar de religião e também ao direito de descrença. Já a segunda autoriza a adoração e a prática de cultos em locais privados ou públicos. A liberdade de organização religiosa tem a ver com a organização de uma igreja.

Ainda que o tema seja muito bem elaborado no país, na opinião de Lucas “os brasileiros de modo geral não entendem a dimensão e importância da liberdade religiosa. Todavia, somos o país com maior índice de liberdade religiosa do mundo. Ou seja: há pouca restrição governamental e a população tolera religiões diversas. Isso não significa que não temos problemas – e problemas graves. A intolerância tem aumentado muito”.

Na constituição federal do Brasil, é afirmada a laicidade do país. Entretanto, o tema é alvo de confusão. As opiniões são conflitantes e o assunto se tornou polêmico. Para muitos, a frase “DEUS É FIEL” nas cédulas do real; os crucifixos em prédios públicos; e os feriados religiosos são provas de que o país nega a eficiência da laicidade. Já para Guerreiro, “O Estado Brasileiro é Laico. E o é por não ter religião oficial. Estado Laico não é estado ateu ou indiferente com a religião. Estado laico é Estado que não promove ou impede as manifestações religiosas – e zela para que todos se manifestem religiosamente como bem queiram”.

O artigo 19, I, proíbe aos Governos o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas, a manutenção de seu funcionamento ou ter relações de dependência ou aliança, a menos que seja amparada na forma da lei, com a colaboração do interesse público. Segundo Iso Chaitz Scherkerkewitz, procurador do estado de São Paulo, “o critério a ser utilizado para se saber se o Estado deve dar proteção aos ritos, costumes e tradições de determinada organização religiosa não pode estar vinculado ao nome da religião, mas sim aos seus objetivos. Se a organização tiver por objetivo o engrandecimento do indivíduo, a busca de seu aperfeiçoamento em prol de toda a sociedade e a prática da filantropia, deve gozar da proteção do Estado”.

A liberdade religiosa na prática, porém, nem sempre é garantida da forma como as leis explanam. É o que nos conta Ninevah Barreiros, brasileira natural de Salvador, que se converteu ao Islamismo aos 20 anos de idade. “Eu sempre gostei de religião, mas nunca tinha achado uma que realmente preenchesse as lacunas das incertezas”, começa Nina. O estudo de religiões e crenças sempre foi de seu interesse, o que a levou a aprofundar-se nos dogmas do Islamismo. Após mais de um ano de estudo intenso, decidiu se converter ao Islã, e conta que o processo de aceitação da família não foi tão fácil. A primeira a saber da escolha foi a mãe, que após compreender que este era o desejo da filha, apoiou, porém essa reação não se aplica ao pai, o qual até hoje não compreende por que a filha escolheu privar sua liberdade de se vestir para adotar o uso do lenço.

Para a religião muçulmana, o uso do lenço e de roupas que cubram os braços e pernas é uma forma de preservar a intimidade. Na presença de mulheres ou de homens que sejam do convívio íntimo, não é necessário o lenço, porém, homens que não são de seu círculo familiar não devem ver partes do corpo, como suas pernas braço e até mesmo o cabelo, simplesmente porque não lhes diz respeito.

A entrevistada relata que as pessoas são receptivas com a religião mas, na hora de conseguir um emprego, a falta de conhecimento atrapalha. Muitas empresas não aceitam o uso do lenço no ambiente de trabalho e usam a desculpa de que não faz parte do uniforme.  

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“As pessoas pensam que a gente cobre a cabeça e fica burra. Isso daqui [que estou usando] é uma echarpe que comprei na Riachuelo. Vocês comprariam e enrolariam no pescoço, eu só peguei e estou usando na cabeça”, conta Ninevah.

Outro problema relatado no ambiente de trabalho é no momento das orações diárias, em que não há liberdade para uma pausa, mesmo que a prece dure só cinco minutos. Um dos princípios do islamismo diz que devem ser feitas cinco orações diárias voltadas para a Meca, cidade sagrada para os muçulmanos. A prescrição para realizá-las é que seja feita em um ambiente limpo e que a pessoa esteja de mãos e rosto lavados, para demonstrar purificação ao falar com deus; Nina relata que somente em um dos seus trabalhos lhe foi concedido tempo e liberdade para exercer sua fé. Outro princípio da religião, que foi respeitado em todo emprego já frequentado por Nina, foi a época do Ramadã, que corresponde a um período de um mês em que é feito um jejum do nascer ao pôr do sol. O costume acaba sendo um benefício para empresa, uma vez que não acontecem pausas pro almoço.

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Mesquita islâmica de Maringá.

Casos como esses, ocorridos em ambientes de trabalho, acontecem pela falta de conhecimento e compreensão da cultura e religião alheia. Grande parte da população brasileira desconhece os detalhes do Islamismo. Isso favorece a intolerância. A Constituição brasileira estabelece em seu artigo 210, parágrafo 1º, que as escolas públicas de ensino fundamental deverão ter, obrigatoriamente, o ensino religioso como matrícula facultativa, porém dentro do horário normal de aulas. No entanto, o ensino religioso nas escolas sofre um déficit de professores aptos para o cargo. A profissão exige a máxima neutralidade e abordagem de uma diversidade de crenças e fés. No ensino privado, muitos professores são padres ou pastores que, por natureza, tendem a enfatizar suas próprias denominações religiosas. Na teoria, para o ensino público, deve haver um concurso que prove a aptidão e conhecimento do profissional. Nesta seleção, também é levado em conta se o candidato é líder religioso ou algo do tipo. Todavia, são muitos os casos em que professores de outras matérias como filosofia, sociologia ou história são usados como “tapa buraco” e ministram a matéria.

Isso demonstra como o ensino religioso é visto no Brasil. São poucos os pais que se preocupam com as notas de seus filhos nessa disciplina. “Meus pais não ligam se eu zerar a prova de ensino religioso. Se eu tirar nota azul em matemática e português é o suficiente”, conta Valeska, 11 anos, aluna do ensino fundamental.

A ementa da matéria deve ser pautada na diversidade de religiões, visto que no Brasil não há religião oficial e, por isso, não se pode focar em uma religião especificamente. Na opinião de Scherkerkewitz, todas as religiões presentes no país devem ser discutidas e exaltadas suas semelhanças, como o aprimoramento do caráter humano, a busca do bem comum, etc. A ideia de Guerreiro complementa: “O aluno deve ser apresentado a uma variedade de doutrinas e opções – e ser levado a formar sua própria convicção. (…) Não deve haver proselitismo. Pode ser que haja dificuldade em traçar limites no começo, mas eles existem e são nítidos.”

    Para encerrar a ideia, Ana Maria Silva, pós doutoranda em antropologia pela UFRGS complementa: “Se houvesse uma instância que se colocasse acima das culturas para lhes dizer como viver e no que crer, estaríamos no pior dos mundos como num totalitarismo ou coisa do tipo. Por outro lado, isso não significa que não tenhamos a possibilidade de criar uma instância que mesmo mantendo o reconhecimento das diferenças fosse capaz de respeitar os direitos dos povos e a condição humana. Porém, ainda não chegamos neste patamar de organização social, acredito que estamos caminhando para isso. Esse é, inclusive, um dos grandes problemas do direito internacional, a meu ver”.

 

Entrevista realizada por Ana Fidalski e Gabriela Neves.