Professora Regiane Garcêz discute local de fala, representatividade e expressão política

Nossa entrevistada de hoje é a professora Regiane Lucas de Oliveira Garcêz. Doutora, mestre em Comunicação Social e jornalista pela Universidade Federal de Minas Gerais, Regiane tem se dedicado a pesquisas com interface entre mídia, lutas por reconhecimento, movimentos sociais, representação política, esfera pública e ativismo.

Regiane esteve conosco durante o VI Multicom, corpo, afeto e política, realizado entre os dias 23 a 25 de novembro, participando da mesa redonda “Midiativismo, Internet e Ação Social” com a palestra “Representação política discursiva nas Redes Sociais: quem fala em nome de quem?”

Buscando entender as relações entre estes conceitos, fizemos algumas perguntas para ela. Confira:

ComunicaUEM: Como se dá a relação entre comunicação e movimento social?

Regiane: Os movimentos sociais têm a comunicação como a principal ferramenta para buscar formas de suas demandas serem contempladas. Para isso, eles precisam falar para fora e para dentro. Quando os movimentos sociais falam para fora do movimento, eles buscam dar visibilidade positiva às causas, convencer a sociedade de que a demanda deles é legítima e, se possível, gerar um debate público sobre aquela questão; além de prestar contas à sociedade sobre o que eles têm feito. O movimento a favor do aborto, por exemplo, fala para fora do movimento não só para dizer “somos a favor do aborto”, mas para especificar razões do porquê aquele movimento é importante, buscar promover um debate público sobre a importância daquela demanda e, se possível, conseguir a aprovação de uma lei. Para dentro, o movimento social usa a comunicação para, primeiro, agregar adeptos. Também para chegar a consensos, uma vez que os movimentos têm uma heterogeneidade interna imensa e precisam buscar alguns conceitos e pautas únicas por meio de debates internos. Essa comunicação intra movimento serve também para a formação dos agentes do movimentos sociais, esclarecendo questões e ações.

ComunicaUEM: Que papel o comunicador (por formação) está apto a realizar dentro de um movimento social?

Regiane: Primeiramente, a gente precisa conceituar movimento social, porque ele pode ser uma coisa bem definida, com fronteiras bem marcadas, ou pode ser uma coisa bem difusa. Quando a gente fala, por exemplo, do movimento negro, há uma imensidade de frentes: o movimento das mulheres negras, o movimento pelas cotas, o movimento de auto afirmação, o movimento pelo conteúdo de história africana dentro dos currículos… É preciso pensar nessa pluralidade de coisas que existe dentro do movimento, pois ele nem sempre é uniforme. Pensando assim, o papel do comunicador seria da mesma forma muito variada.

Uma função muito importante é fazer com que o movimento possa conversar internamente para que se tenha mais clareza das diferenças e dos consensos internos e, assim, mais condições de comunicar para fora de forma eficaz. Um comunicador dentro do movimento precisa ser um agente catalisador daquelas pessoas, ainda que elas discordem entre si. Ele precisa ser capaz não só de informar mas de também esclarecer. Operacionalmente, ele pode trabalhar, para dentro, como agente mobilizador e como produtor de veículos informativos ou pode também agir em uma função mais organizacional, pensando os públicos internos, o planejamento de comunicação, ações de mobilização. Ele pode estar envolvido em rodas de conversas, produção de documentação que unifique aquele discurso, e pode, inclusive, propor que os discursos se alinhem. Para fora existem também os sites, blogs, as redes sociais, os releases e as produções de eventos que busquem mobilizar o público.

ComunicaUEM: Uma questão muito discutida atualmente é o local de fala. Pensando no comunicador mas não somente, como podemos identificá-lo?

Regiane: Esta é uma questão bem delicada, porque nem sempre o comunicador é um integrante, um militante ou ativista, às vezes ele é apenas um profissional contratado. O lugar de fala deve então ser sempre construído junto às lideranças das organizações e dos movimentos e, inclusive, é necessário lembrar que o bom comunicador, seja ele ativista ou não, sempre deve trabalhar coletivamente e pensar de forma integrada, principalmente nos movimentos sociais. O comunicador pode até não ser um militante, mas ele precisa conhecer aquele movimento a fundo, estar por dentro das intenções e objetivos do mesmo, porque só conhecendo, ele vai saber como estabelecer o seu local de fala de modo a favorecer a representatividade daqueles que falam pelo movimento. Então, o comunicador que conhece de fato a realidade da organização, do movimento para qual ele trabalha, é capaz de distinguir a necessidade de fala do momento.

Existem também os momentos de crise, de visibilidade e legitimidade, onde se questiona o movimento. Nesses períodos de crise, nem sempre o integrante do movimento deve se expor, às vezes é importante que o comunicador seja o porta-voz. Frisa-se aqui, então, que o local da fala deve ser sempre construído e pensado em meio a perguntas como: Falamos para quem? Em nome de quem? Qual é o objeto? O que eu defendo? Para qual audiência eu falarei? Para a imprensa, internamente? Para quem eu vou dizer? O que eu vou defender? Em nome de quem eu vou dizer? Etc. Sendo essas perguntas o que chamamos de mapa da representação discursiva.

O comunicador pode até não ser um militante, mas ele precisa conhecer aquele movimento a fundo (…) de fala de modo a favorecer a representatividade daqueles que falam pelo movimento.

ComunicaUEM: Sabemos que a Internet e as redes sociais apresentam outras possibilidades de expressão política. De que maneira isso vem acrescentar ou modificar as relações em um movimento social?

Regiane: Existem dois ganhos imediatos para os movimentos sociais. Primeiro, as distâncias, pois existem movimentos muito dispersos no território nacional e, com as redes, se consegue organizar ações coletivas mais descentralizadas e se consegue estabelecer orientações de outros movimentos sociais. O segundo ganho imediato posso dizer que é a facilidade da visibilidade das redes, pois é mais barato, mais rápido e bem mais simples. Essas são então as duas potencialidades. Junto com isso deve-se avaliar também os desafios encontrados pelos mesmos, que são: o risco de não falar pra ninguém, pois ao mesmo tempo que se tem a possibilidade de atingir um grande número de pessoas pela internet e pela rede, existe um fluxo intenso de informações geradas naquele momento, encontra-se então nestes meios  uma competição de informação e visibilidade. O comunicador enfrenta então esse desafio de fazer um bom mapeamento de tudo, um bom planejamento de comunicação, uma boa estratégia para atingir o seu público. A comunicação nos meios sociais exige então trabalho como a comunicação de qualquer organização, que vai desde o diagnóstico, passa pelo plano de comunicação, implementação, avaliação e controle. São várias etapas, entendendo a internet como uma ferramenta importante que precisa  ser usada com o planejamento geral e não isoladamente.

ComunicaUEM: O que difere o “ativismo de internet” de manifestações mais tradicionais? É possível classificar qual é o mais eficaz?

Regiane: Eu sou uma das pessoas que critica o ativismo de internet (risos). Digo isso porque ele pode ser feito muitas vezes de forma limitada e temos sempre que pensar nas várias esferas de atuação de um movimento social, seja nos pequenos movimentos ou nas causas mais abrangentes. Algumas questões não têm um movimento específico, por exemplo, a causa do aborto, que envolve não só as feministas, mas sim um número maior de pessoas. O caso engloba todas as esferas, e por isso temos que pensar entre elas, sendo a esfera das redes sociais uma a mais em meio a todo o conjunto. O ativismo é importante? Sim. Mas junto com ele têm as manifestações de rua, que tem sua importância, mas também não pensa sozinha.

É preciso ter uma atuação muito próxima dos representantes eleitos, principalmente com os que vão de encontro à causa em questão. Estes têm influência e podem de alguma forma mobilizar a imprensa, o judiciário (pela questão legal), e várias outras arenas que vão aparecendo de acordo com cada caso. Há especificidades no conjunto de arenas que precisam ser mobilizadas, para que a causa ganhe visibilidade e tenha algum tipo de ação eficaz. É o que Habermas fala quando fala de uma esfera pública vibrante: o discurso precisa circular em várias esferas, não podendo ficar só nas redes sociais; principalmente porque as vozes discordantes não estarão majoritariamente nas redes que conhecemos e nos nossos círculos de amizade. A voz dissonante tem que aparecer para poder se criar um diálogo, para que ele seja um tema que vibre a esfera pública e assim pessoas conversem, busquem aquele tema, discutam e procurem soluções conjuntas. É por isso que o ativismo de sofá é importante e tem o seu ideal, mas é um pedacinho dessa grande esfera pública que merece ser olhada como um todo.

ComunicaUEM: Observando os números das últimas eleições, podemos perceber que as pessoas já não se sentem mais representadas pelas figuras políticas. O que isso quer dizer?

Regiane: A gente vê nesse cenário das eleições um discurso contra-político, em que os candidatos não historicamente ligados a política, que não fizeram carreira na área, têm ganhado e sido bem sucedidos não pelos seus méritos pessoais, mas justamente porque não estão ligados à política. Isso é um contrasenso, pois ao se candidatar ele já está se vinculando. Sem contar que fazemos política o tempo todo. Nós vivemos politicamente. Nossas regras sociais são regras estabelecidas socialmente que, de alguma forma, convocam uma política diária. Então, dizer que não quero o candidato que é da política já é uma incoerência, pois precisamos acionar um conhecimento político o tempo inteiro na nossa convivência social. Derivado disso, vem o entendimento de voto como uma obrigação: se votei nulo, não tenho nada com isso. A responsabilidade dos eleitores parece se limitar ao período da campanha e da eleição. Há aí o segundo problema da questão, o da representatividade. O acompanhamento, a solicitação da prestação de contas feita pelos eleitores, de forma geral, precisa ser entre os períodos de eleição e os representantes precisam prestar contas à população periodicamente, aqueles que foram eleitos e os que também não foram. O movimento da representação precisa ser contínuo e dinâmico.

Esse entendimento errôneo que nós temos da política faz com que lavemos as mãos e deixemos de cobrar uma representatividade. Aí fica valendo os períodos, a regra da maioria – ainda que a maioria não tenha votado. A cultura da representatividade sofre uma crise. Nós desanimamos de votar porque quem escolhemos não atende aos nossos interesses, mas, isso acontece porque a dinâmica de representatividade não atende e nem contempla essa cobrança permanente da sociedade.